sábado, 26 de abril de 2025
O NAVIO SOB OS TELHADOS
(de “O Navio sob os Telhados”, contos de Guilherme de Faria)
Habito um porão inabitável. Qualquer coisa como uma toca cujas paredes se cobrem lentamente de musgo e cujo teto poreja água a um palmo do meu crânio. Aqui trabalho. Sou observado e observo o corredor desta espécie de vila por uma meia-porta-e-janela, única fonte de luz. Antigo prostíbulo, creio, todo o beco, que não passa de cômodos a fundo e de um único lado de um comprido corredor descoberto. Uma faixa pintada no chão desemboca sob um alto portal de ferro batido com laivos de art-nouveau. Afora o portão, feiúra e miséria no corredor e dentro as portas. Minha atividade desperta curiosidade nos vizinhos. Gente simples, que se debruça na portinhola, fala comigo e me dá palpites. Abanam a cabeça e noto-lhes um ar de piedade e incompreensão: ”Um moço tão distinto, coitado, não deve vender nada. Também, cada coisa feia...” Trazem-me às vezes, carinhosamente, um prato enorme, montanhoso, de refeição operária. Arroz, feijão, couve, tutu, às vezes uma carninha, outras coisas. É engraçado.... essa gente parece comer bem. Ou pelo menos muito. Aceito, agradeço e como. Continuo a trabalhar. Um amigo chegado há horas e estendido em minha cama, me aponta com o dedo e um olhar neurótico seus próprios pés, incapaz de se mexer. – “Desvie os pés dos pingos d’água, ora essa!” Mas ele deixa cair a cabeça no travesseiro imundo e se resigna, os mumificados, a água escorrendo pelos sapatos. Há qualquer coisa de insondável nisso tudo. O hálito cavernoso de minha residência me consome... Os vizinhos me alertam contra Dona Gertrudes. Querem-lhe mal e vice-versa. Ela não mora no raso como nós. Vem varrendo água de muito longe, não descobri de onde, lá por cima. Meu porão tem uma fachada, vejam só, que termina bruscamente e não se vê mais nada, nem casas nem telhado acima. Estamos no rés-do-chão da Vida, creio eu.... Uma cascata de água suja, seguida de uma frenética vassoura, despenca pela escadinha de cimento que ancora ao lado da minha porta. No fim da vassoura vem a Sapa (é como eu a chamo, mentalmente). Literalmente uma Sapa. Baixinha, gorda, esborrachada, com larga boca em curva descendente, óculos grossíssimos que lhe põem os olhos esbugalhados. E um saiote, meu Deus! Branco, rodado, muito curto para tão veneranda Sapa. Ela varre a imaculada e exata largura de sua faixa territorial, seu passadiço até o cais da rua. E invectiva contra a fila amontoada de latas de lixo, papéis picados e pontas de cigarro que se acumulam nos dois terços da largura do beco. “- Porcos imundos, gente suja, veja isso, é demais, etc.”- Dona Gertrudes me aponta a desolação poluída do beco, e pressinto que daí por diante vou se disputado como testemunha pelos dois partidos. Contemporizo. A diplomacia me cai bem, baixo que estou. Dona Gertrudes se entusiasma. Lá vem ela com um prato cheio também. E fala, como fala! Não percebo bem, mas ela me conta coisas e me convida a subir ao seu terraço, às suas plantas. Deixo-me levar, não há retorno agora. A Sapa ciceroneia os seus domínios, lá vamos nós! E subo. O terraço não termina aqui, é estranho...Uma passarela de madeira escala as ondulações. Estamos na superfície. Os telhados... Percorremos um corredor envidraçado que ondeia sobre tábuas estranhamente inclinadas. Mal posso descortinar a paisagem. Paisagem? Estou preocupado com o piso! Chegamos a um enorme galpão com madeiramento à mostra, de uma manifesta sabedoria naval. Um bom salão... Viro-me para todos os lados. Pequenos seres me observam com seus olhos de vidro e pestanas lustrosas. Por todos os lados Dona Gertrudes me presenteia com a visão de suas preciosas prendas. Bonecas e mais bonecas de plástico, industriais, monstruosas, forradas de tecidos franjados, rendas, babados, quinquilharias. Centenas de pequenos monstros rechonchudos que pressinto sobre as pregas e os bordados de uma alvura obsessiva, entre fitas e adereços cor-de-rosa e azul celeste. Arre! Por hoje chega. Despeço-me da Sapa debaixo de conselhos, advertências, mezinhas e receitas para os meus pulmões de náufrago, e volto atarantado ao meu porão. ............................................................................................................................ Conseguirei que a água corra das torneiras? Já arranquei as vísceras das paredes, e os tubos pendem obscenamente sem resultado algum. Está tudo obstruído há séculos, como intestinos podres. _ não, não aceito encomendas, minha senhora. Faço catres e alcatres só para mim mesmo. Meu negócio é outro, está vendo? Preciso apenas de mais um banco manco e uma mesa tesa. Daí esses cavacos. Faz favor... - “Não, não corto esse pedaço. É grande assim mesmo. Eu sei que é melhor “após a chuva”, mas não é da minha especialidade. Cada um faz o que pode, né? É o Apocalipse, minha senhora. O fim dos Tempos, pois é... Tá lá na Bíblia. Procure lá. Pois é... Não, encomenda não, me desculpe. Dinheiro, só de graça, trabalho demais, não tenho tempo, compreenda.” Droga, ai vem o Krishnamurti do número 4. Filosofia espiritualista, né seu Rodolfo? Vai bem com os paletós, compreendo. A sua solidão espiritual durante as costuras. Passar tudo a ferro, não é mesmo? As cuecas do espírito... Não se zangue, seu Rodolfo. Devagar, devagar, divaguei. Compreendo: é preciso crer para ver. Senão descamba. É mesmo. Decaímos muito, decaímos muito, concordo. O Apocalipse vai bem, obrigado. Não, não corto, não corto. Da minha janela diviso o seu André sentado à sua porta gritando as maiores pragas para a sua santa mulher. A saber: Filha da puta! Merda de vida! etc. Tem o olho direito vazado. Ou é o esquerdo. E sanguinolento. Perdeu-o ontem na sarjeta, de onde sua mulher o recolheu para a ressaca e o desespero de hoje, estou vendo. .............................................................................................................................. Noite. Marina irrompe pelo portão com armas e bagagens, os olhos arregalados e estoura em minha sala, apavorada, perscrutando a “pornela” fechada atrás de si. Ponho-me à espera também, olhando a madeira que se torna quase viva. Três minutos. Pá Pá Pá. Passo duros e bufos que se precipitam pelo corredor e se chocam contra a minha “japorta”. Ouço um vivo range de dentes através dela e a tensãqo muscular insuportável. Dois minutos. Marina de olhos vidrados, verrumando-os no postigo. A veneziana estala e ele se prcipita de cabeça na monha sala, meio pendurado pela cintura. Apavorado, mantenho-me heroicamente estático em sua frente, Marina, afásica, colada na parede atrás de mim. –“Alto lá!” (deixo de dizer). Estou agarrado pelos braços à altura dos bíceps por munhecas enormes e fortíssimas. Os dentes dele rangem em minha frente enquanto tomo um ar sereno e beatífico à custa de pavor. “Devo dominar o animal magnífico com meus olhos espiritualizados e severos...” Arre!!! Três minutos eternos de tensão e meus braços roxos quase escorrendo entre seus dedos. Ele desaba no banco à minha frente, sacudido de tremores. Uma ligeira pausa e lá vem de novo o ranger de dentes que parece nascer de algum ligar que não a sua boca, no ar, atrás de mim. Ah! Rangem agora em uníssono os dele e os da mulher-baixo-relevo-na-parede-atrás. Estou falando manso Há alguns minutos sem perceber. Repetindo frases de domador firme e amoroso, até cessar lentamente os ruídos e os passos. – CHEGA! NÃO AGUENTO MAIS! BASTA! (Ainda bem que eles foram embora juntos há algum tempo. Tenho os braços adormecidos e dou o maior esbregue na solidão do meu porão atormentado. ............................................................................................................................. Hoje minha cabine amanheceu verde. O teto suando em toda extensão. Envolto em vapor gelado, visto meu guarda-pó de banho. Vou ter uma conversinha com a dona Gertrudes de homem para homem. Tanta água à tona e meu chuveiro afônico... Trifásico, afásico. Raios! Afino o ouvido para a cascatinha. Lá vem ela. Pego-a na altura dos escaleres, vai ver.- Como vai, Dona Gertrudes? O Capitão voltou? È preciso manter o convés limpo, não é mesmo? Nunca se sabe... Ah!, é Dona Gertrudes? Gostaria de ver. Subamos. É mesmo! Tutu! Veja só...E sapatilhas! Não como Marina não, Dona Gertrudes, ela faz moderno. Essas coisas... Dançarina, pois é... Lamentável. Essas são bailarinas, hem, Dona Gertrudes? Tal e qual. Ah! A senhora fez também... Quando criança? Ah!... Não, dona Gertrudes, passos modernos, assim. Isso, vamos lá. Pois é, modernismos. Muito bem. Pelo salão todo Ah! Clássico, prefere... Pas-de-deux, não é Dona Gertrudes Pelços corredores! Saltemos! Quê? O que diria o Capitão, Dona Gertrudes? É mesmo... é preciso disciplina a bordo, concordo. Premos, Uf, uf. É o retrato dele? Seu filho oficial... Ah! E as bonecas... Não, Dona Gertrudes, ela é do moderno. Canal 13, Pois é até mais, Dona Gertrudes, fica para outra vez. Ahoy, não é mesmo? Ah! Ah! Ahhhooooyyyy!!! ............................................................................................................................. Noite, outra vez. Todo dia, noite. Droga, Marina aqui agora. Minhas tias tinham que me fazer esta visita? Vinte anos, ou três, pelo menos. – Não, tia Judith. Sente-se aqui. Não tenho bolos, pois é. Só rum. Não querem? Sentemo-nos na cama. O tapete está fora d foco? Não, não varro. A limpeza... Aqui é o porão... Eu sei que foi a senhora que eu, Tia Mode, mas... Chama-se Marina, né Marina? Montero. Pois é. Isso mewsmo. Artista. Assim, pardinha, né, tia Mode? Uma graça, não? Tia Judith, a senhora está bem? Sente-se aqui. A senhora não está bem acomodada, deve ser. Não tia Mode. Moderno. Canal 13, por aí... Maqravilhoso, não? Isso, Marina, faz para elas verem. Ligo a vitrola. Incrível, não acham? Não, não se incomodem, ela está acostumada. Contorcionismo, não é mesmo? Espere aí, eu afasto as cadeiras, podem ficar nelas , eu arrasto, hummm. Estão com pressa? Faz daquele jeito, Marina, isso! Ta ta ta tará-rá! Grande! Tia Mode, tia Judith! Prá quê essa pressa? Marina, parer! Dê um beijo na tia mode, na tia Judith. Gostaram, né? Voltem sempre. Um pouco úmido, faz mal pra artrite, ah... canal 13, tia Judith. Canal 13... .............................................................................................................................. Dona Inalda veio me pedir que pare de riscar fósforos de noite. Os estalidos não a deixam dormir. Além disso faz mal para a saúde, tanto fósforo assim. É preciso dosar, ela diz. Aproveito e convido-a para jogar palitinhos. Prefere bingo. “Não, não tenho, Dona Inalda, que distração a minha! Bingo, taí...” (arrumo disfarçadamente a cama, cobrindo as manchas suspeitas.) Que diabo! Um homem tem direito de se divertir sozinho, sem prestar contas a ninguém. Minha cama está na sala, vá lá. Mas não tenho culpa do camarote estar fazendo água. Dona Inalda parou de lançar olhos suspeitosos e sente-se mais à vontade. Velhota simpática... “É uma flauta, Dona Inalda. Não, não toco, só apito. Desde criança, Dona Inalda, quando ouvi pela primeira vez o Bartolo. “Seu Bartolo tinha uma flauta... ! Larí-rí-rí. Larí-rí-rí-rí-lariiiiii. Toma chá comigo a Dona Inalda. Estamos íntimos. Da próxima vez, tomo chá com ela. ............................................................................................................................. Vou tirar isso a limpo. Não me dão recursos. Não há condições. Não tem almoxarifado. Água entrando, água entrando e o Capitão não vem. Dona Gertrudes que se cuide. É muita responsabilidade para uma senhora. Ainda mais em tais condições. Viúva em vida. Esperando, esperando. Raios, o Capitão está faltando com os seus deveres. Iremos a pique sem mais contemplações. Tenho vontade de precipitar as coisas. Não, não posso fazêlo sem antes conhecermos as Ilhas, sem termos nos movido um centímetro sequer. Que humilhação, meu Deus! Que humilhante, naufragarmos aqui mesmo, ao pé do cais... Falta manutençao, é o que digo. Tenho vontade de fazer motim, para obem da dona Gertrudes. Vou demovê-la de sua inércia tão pouco masculina. Droga, é preciso que alguém assuma o comando, nem que seja provisoriamente. Dona Gertrudes! Dona Gertrudes! Raios! Esta morta, por hoje. .............................................................................................................................. Hoje amanheci numa vaga melancolia, e com a veia lírica. Devo mostrar meus versos ao resto da tripulação? Não estou bem certo.. Não se usa mais poemas desde o tempo das escunas, com seus mastros e tudo. Além disso, prefiro declamá-los para a Dona Inalda, que tem senso crítico e é vagamente demodée. Cada um com suas fraquezas, não é mesmo? “Salta espuma bravia, salta e dança. Como um demônio, eu lhe digo, como um demônio...” Visitas novamente. Não posso. Não posso. Não estou para sociedades. Batam quanto quiserem na minha porjela. Não tempo nem dinheiro para acotovelamentos. –Merda! Vão embora! Boa, meia palavra bosta. È preciso controle sobre a situação. Sangue frio. Andaram perguntando por mim à Dona Inalda, ela me contou. Mas posso confiar na nossa boa camaradagem de velhos marujos. Ah! Ah! Cuca fresca, lirismo. Adoro meus serões matinais. Pena a Dona Inalda não star aqui. Não me arrisco a sair, isso não! Com esse ratos de bordo, que sobem pelas amarras... que se danem! Não é hora de subirem a bordo, ratos de água doce! O navio vai a pique, sabiam?! Não, não sabem. É um segredo entre mim e a ddona Inalda. Mas devo agir. DEVO AGIR DIANTE DAS CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS! ! ............................................................................................................................... Tenho tudo preparado. Sei como retirar Dona Gertrudes da sua inércia. Pego-a hoje na lavagem do convés. Uma mãozinha, um versinho, verão! Dona Gertrudes não resiste ao entusiasmo trabalhista. Devo contribuir com mnha parte, vou esvaziar meu balde de fósforos, já que aqui não temalmoxarife nem contra-mestre. Raios! E ouvido atento para a sua banheira... é o sinal. La vem ela. Lá vem ela. Dona Gertrudes! Como passa, Dona Gertrudes? Vento de estibordo, hem? E nós aqui atracados... Vou pegar minha vassoura e um balde, espere. Vamos lá, assim é melhor. Mais água.. Vamos subir, é preciso vir trazendo lá de cima, não é mesmo? Não poupemos água. Agora os panos. Com os rodos, assim. Dona Gertudes, o porão está fazendo água, vamos descer. É preciso calafetar. Talvez um poço de alcatrão. Vê? Assim vamos a pique. Não podemos ficar parados. Pegue ali o machado. U fico com este aqui. Ali, aquele banco, e a mesa. Temos muita lenha Ateie fogo! Isso! O armário. Metamos o machado em tudo. Assim. Abaixo essa estante, os livros, ateie. Deixe-me fazê-lo. Esta cama, por quê não? Está úmida? Meta o machado ali naquela coisa. Tudo! Tudo! O Apocalipse! É preciso fazer-nos ao largo. Mais! Mais! O fogo está alto, mais ainda. Juntemos tudo. Vamos zarpar! O navio! O NAVIO! Estamos fazenda água. Ao largo! A toda marcha! Preparem os escaleres! Mais lenha, Dona Gertrudes! MAIS LENHA! MAIS LENHA! MAIS LENHA! FIM São Paulo, 1975
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